Monday 18 February 2008

ÍNDIA

Odder - Ornitologia
Cheguei de madrugada a Dharamshala, depois de viajar toda a noite, desde Nova Deli. Na estação, estava um saddhu indiano, sentado num banco de madeira, e perto, algumas mulheres em saris coloridos. Acenou com a cabeça, olhou para mim com um sorriso cândido, como se estivesse à minha espera, e como se me conhecesse desde sempre. Inclinei ligeiramente a cabeça como para responder ao cumprimento dele. Muitos pássaros esvoaçavam à altura do chão, e faziam muito barulho pela estação, no ambiente irreal da névoa desta nova madrugada. Ainda prezo o forte sabor deste algo muito novo. Suponho que ele me conhecia de uma qualquer incarnação passada.

Dharamshala está dividida em duas partes, a inferior e a superior, ou a de baixo e a de cima, como se preferir. As duas partes estão separadas por vários quilómetros e no entanto, oficialmente, ou talvez não, sejam uma e mesma vila. À parte de cima chamam, não oficialmente, Mc Leod Ganj, por isso à parte de baixo chamo simplesmente Dharamshala, que é qualquer coisa com “abrigo do peregrino”, sendo dharam, peregrinos.

A parte de baixo de Dharamshala, é essencialmente uma estrada única que se estende sobre uns quilómetros, a dois mil metros de altitude, de maneira não muito ordenada, e espalhada pelas encostas, como é típico destas localidades asiáticas de montanha. Contrariamente à sua contraparte superior, a vila de Mc Leod Ganj, onde reside o exílio do Dalay Lama e do governo tibetano que o seguiu, a pequena Lassa, como a chamam, Dharmsala não é tão “viva” como a comunidade tibetana e os seus seguidores e admiradores ocidentais africalhados.



Em baixa Dharamshala, a comunidade é de origem local, de raiz indiana e de religião hindu. Vivem lá, no entanto, dezenas de portadores kashmiris, ou da Caxemira, habitualmente estão encostados aos muros onde param os táxis e os autocarros, à espera de serviço. Estes fulanos costumam ser barbudos fortes, oriundos dos altos lugares do Norte da Índia, vestidos das grossas túnicas castanhas de lã que lhes são características, as cordas atadas ao cinto à maneira de cavaleiros vindos da idade média, e ao qual impingem trabalhos de escravos, carregando fardos pesados às costas, pelas ruas.

Em maioria, a gente local é hindu, o ponto vermelho entre os olhos, o bindu onde se concentra o infinito, e vivem com todos aqueles deuses por cima, que nos observem com todos os olhos deles, todas as caras e que nos acenam com todos aqueles braços, apesar de que, aqui na região, serem preferencialmente shivaístas nas suas práticas.

No caminho que deixa Dharmshala para Mac Leod Ganj, existe um pequeno templo dedicado a Kali-Matai, com pinturas de uma deusa preta, pintada nos rochedos, que sobressai curiosamente por entre os outros deuses. O Babá, o Senhor do lugar chamou-me e mostrou-me o interior, com mil e uma recomendação de cuidado, no dialecto local, que não apanhei muito bem, como não se falou uma palavra de inglês. Mesmo assim, percebi que nenhum estrangeiro podia entrar em tais lugares sagrados, como é o habitual neste tipo de situações, fazem-no perceber de tal maneira, que a coisa proibida só piora a sede curiosa, mas por muito estrangeiro e por muito estranho à religião, eu possa ser, acabam sempre por deixar espreitar. Normalmente, neste tipo de caso, não insisto, deve ser provavelmente por isso que eles abrem as portas. A deusa era negra, e as cabeças cortadas de fresco, penduravam ao pescoço.

Onde a planície acaba para dar nascimento aos Himalayas, encontra-se o Instituto budista, no sopé dos 4000 metros de altitude do Dhauladaur, uma enorme parede de pedra cinzenta que se ergue por detrás das pequenas colinas verdes. A partir de Dharamshala, fica dentro do vale de Kangra, e em Garoh, vira-se a esquerda para apanhar mais tarde, a estrada principal que leva para Kangra.

Odder é apenas uma minúscula aldeia perdida nos sopés das grandes montanhas, com duas ou três lojas básicas e uma barraca onde se bebe chá à beira da estrada. Não consta nos mapas indianos, nem nos mapas ocidentais, simplesmente não aparece em mapa nenhum. Fica apenas entre Dharamshala e Kangra, escondendo-se nalguma plantação de chá preto de Kangra, num jardim de chá, como eles próprios chamem.

Quando cheguei lá, presenciei uma luta, dois homens estavam a segurar num terceiro, no que pensei ser um caso de roubo. Apesar desta situação anormal, encontrei o “Tibeti Mandir”, o “templo tibetano”, ou melhor, o instituto budista de Odder, depois de perguntar a um dos sujeitos, e por debaixo das folhas de bananeira e outras grandes árvores, uma pequena comunidade de cor vermelha escura, estava a ver o tempo a passar, como sempre o fizeram e sempre o farão.

Passado alguns dias, foi-me dado o meu quarto, com vistas para as traseiras, para os campos vizinhos, bosques e montanhas do Daulhadaur, e para a frente para uma única quinta, pertence de uma família indiana, e para a planície indiana que desce em direcção ao Sul.

Estamos no exacto limiar onde nascem as mais altas montanhas do mundo. Por falar neles, nos vizinhos da frente, tinham por hábito de tocar a maldita miserável aparelhagem de som, em alto e bom som, às quatro, cinco da manhã, com música disco massala indiana, fazendo aquilo que eu supunha serem festas frenéticas, antes de irem trabalhar para os campos. Nota: a massala é aquele conjunto de especiarias básicas que se usam em qualquer prato indiano que se preze, e foi o nome pejorativo dado pelos turistas britânicos, e não só, à música disco, geralmente de vinte ou trinta cêntimos, dos filmes feitos em Bollywood. As monjas adoravam isto, acontece que alegrava as preces da madrugada.



Cheguei em plena altura de exames, eles estavam a ter os exames anuais de Filosofia, que duraram umas semanas, o que adiaria o início das minhas aulas. Fui repentinamente e brutalmente confrontado com um conceito completamente novo para mim, a importante lei da não acção, a não subestimar nestes círculos budistas, pois é a chave de toda e qualquer compreensão lógica de tudo o que se seguirá debaixo destes céus. Paciência será recomendada.

Subjugado pela beleza natural do cenário e os trajes vermelhos escuros cor de mogno, fiquei três dias numa espécie de limbo extático, “beato” debaixo da árvore Bo antes que começasse a pensar de novo, só então comecei a assimilar o dia a dia regular do lugar.

Por causa dos exames, foi-me dado tempo que comecei a ocupar, com o que se tornaria numa das minhas ocupações preferidas, sessões sentadas no balcão. Nada de muito importante, apenas fumava Bidis indianos e admirava toda a vida selvagem que me era oferta. Hordas de centenas de papagaios verdes eram vistos esvoaçar de maneira incansável e frenética, por cima de nós e dos campos, faziam barulho como crianças durante o intervalo no pátio da escola, por cima das nossas cabeças e nas árvores, as cores infatigáveis das penas, em movimento no céu do sol poente. Outra espécie de pássaro que não conseguia identificar, podia ser apreciada nas redondezas, mais silenciosa, mas também em grandes números, mais pesada no seu voo e com um círculo amarelo à volta dos olhos. Viria a ver, uns meses mais tarde, o que eu penso ser uma ave de paraíso por cima da loja de chá, com uma longa cauda de penas brancas de, pelo menos, cinquenta centímetros.



O professor de Filosofia tibetana vivia no quarto ao lado do meu. Ele era um monge que aparentava cinquenta, sessenta anos, exilado do Tibete, com uma expressão bastante simpática. Veio-se a provar que o homem comunicava de uma maneira bastante poderosa, através de estranhas manifestações mentais, visto que ele não conseguia falar uma palavra de inglês, o facto era que eu percebia-o e ele não falava uma palavra de inglês. Ele viria a tornar-se no que eu ironicamente chamava, de “a minha consciência”, dada a maneira como as palavras dele, os pensamentos dele, ocupavam os meus, melhor, preenchiam os meus. Ele e a Sonam, seriam poderosas mentes falantes, estas duas pessoas mostraram ser poderosos mágicos como só a tradição tibetana está repleta, na maneira xamanista central asiática, onde se enraíza.

“O que estas a olhar, é a tua força vital e é uma coisa boa”. Um pássaro entrou no meu quarto pela porta aberta da manhã e permaneceu pendurado por cima dela, durante uns tempos, enquanto me fixava com aquela cara engraçada, ele disse-me: “isto é a tua força vital” quando eu estava a olhar para as árvores e para os papagaios verdes. Ele também disse “isto é a tua felicidade” quando estava subjugado pela beleza de semelhante cenário. Ele cantou-me a sua melodia traquina e brincalhona enquanto permanecia por cima da porta, ele olhou para mim e ele era um monge tibetano.

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