Thursday 26 July 2007

PAQUISTÃO

Hunza - Gojal - Kunjrab

rakaposhi


baltit - karimabad
Depois de Gilgit, entramos em Hunza, o Rakaposhi de 7790m, que se via de Talechi, aparece agora à nossa direita. O vale de Hunza consta de lendas antigas pela sua pureza e verdura, uma verdadeira oásis de vegetação luxuriante no ambiente desolado das altas montanhas do Norte do Paquistão. Antes de se construir a estrada do Karakoram, reza a lenda que pelo seu isolamento e pela riqueza dos seus produtos, a região de Hunza era o Shangri-La, aliás bastante referenciado pelas publicidades modernas, uma espécie de paraíso perdido onde a corrupção e poluição exteriores não chegavam, e cujos habitantes conseguiam ultrapassar a centena de anos sem grandes problemas.

O Shangri-Lá, o tecto do mundo, consta também noutras lendas, noutros povos, noutros lugares como entre tibetanos, mas como também ocuparam a região antes desta se ter tornada muçulmana, as coisas misturam-se e confundem-se, e não me compete a mim discutir o facto. No entanto, os alperces e os pêssegos e outros frutos que são secos nos telhados das casas são realmente uma delícia, e fizeram fama até muito além dos mercados de Kashgar, do outro lado das montanhas no Turquemenistão chinês. Estamos aqui algures num dos troços que liga à rota da seda da idade média, e que pode nos levar até Xian, ou Pequim, na China, se seguirmos as pegadas de Marco Pólo.



Baltit, Karimabad, as duas vilas que quase não se separam formam o coração do vale de Hunza de onde se pode apreciar a sua beleza na sua quase totalidade. Em frente, por entre as montanhas, avista-se o antigo principado irmão de Nagar, de acesso mais difícil.



Gostava de salientar que a história do paraíso do Shangri-Lá de Hunza está repleta de assassínios e tomadas de poder sanguinárias, por entre membros de mesmas famílias da nobreza local, como é habitual em qualquer família nobre em qualquer parte do mundo.





hunza


Baltit e Karimabad são um sítio onde o tempo pode ser agradavelmente passado sem se preocupar muito com stress e afazeres normais das cidades modernas. No dia a seguir à minha chegada, chegaram dois fotógrafos checos na minha hospedaria, que vendiam as fotos a agências profissionais. Uma curiosidade, carregavam tripés enormes com eles, nas mochilas. Árduos trabalhadores.



Os hunzakutes, habitantes de Hunza, para os interessados, pertencem ao ramo ismaelita do Islão, algures entre os conflitos fraternos entre sunitas e chiitas, e são considerados mais liberais, por seguir um islamismo mais relaxado, e são também de descendência persa e não árabe, o Irão não estando muito longe, e falam um dialecto mais próximo do persa do que do árabe.





gojal


A seguir a Hunza, entramos na última parte da estrada do Karakoram, o Gojal, a parte mais alta do Karakoram, o topo do acontecimento. Até Kunjrab, a estrada sobe até 4750m, até a fronteira com a China, e volta a descer para entrar num sistema montanhoso diferente de configuração mais antiga, mais arredondada, os montes Pamir.







O alto Gojal, também um espectáculo em si, proporciona vistas nunca antes vislumbradas, com características diferentes. Aliás, todas as regiões diferenciam-se entre elas, com é natural pensar, pela linha do horizonte, ou pelo desenho e textura das suas montanhas. Chegamos aqui ao topo, não estamos muito longe do K2, o segundo cume mais alto do mundo, um feito um bocado mais complicado de acesso, e que merecia mais atenção. Talvez noutra altura. Aqui os cumes são mais agudos e mais agressivos. Vislumbrei o planeta inteiro de uma das curvas da estrada.





passu


Pedi que me deixassem em Passu, e quando me deixaram no meio de um espaço aberto e deserto, assustei-me e pensei que estava perdido. Mas não, estava ao lado do Batura Inn, um sítio muito espartano, mais cujo dono era um espanto pela sua simpatia, as suas histórias e pela sua comida. Fiquei num quarto, com um japonês que se recusava sair da cama o tempo todo. Não sei se estava doente, se amuado. Devia estar a divertir-se, cada qual à sua maneira. Talvez falta de sushi como havia de referir um amigo australiano, noutro sítio, noutra altura, e a falar de outra pessoa.





Em Passu, a paisagem é de cortar a respiração. Temos acesso a pelo menos dois glaciares que descem até a estrada, várias vezes dinamitados por avançarem em demasia sobre as aldeias. Um pouco sujos e cinzentos, da terra que arrastam, mas sempre impressionantes. As montanhas formam uma espécie de parede gigantesca de picos de calcário, e são apelidadas de catedral por alguns. Segundo soube, os habitantes de aldeias não muito distantes, tinham por hábito de fazerem ataques organizados às caravanas que por aqui passavam em direcção a Kashgar, e de pilhá-las dos seus bens. Enfim velhos costumes, suponho-eu.





Aqui descobri, através dos relatos deixados por outros que pela hospedaria passaram, que o preço da viagem de Sost, a fronteira para a China, para Tashkurgan, o posto fronteiriço chinês, custava uns bons milhares de rupias, mais uma vez pedem aberrações por troços, que não são maiores do que outros. Isto é uma maneira indecente de sacar dinheiro a quem chega e não está a espera. Recusar, significa ter que voltar para trás para Islamabad, o que é um bocado complicado, depois de ter chegado quase à fronteira.

Depois de ter feito as contas e ter descoberto que não ia sobrar quase nada a seguir, decidi lançar-me à aventura. O destino era Pequim.







A fronteira, ou pelo menos, a última aldeia antes, chama-se Sost, e para quem quiser especular deve ser um antro de contrabandistas, e gente afim de todas as classes, reunidas e decididas em fazer dinheiro. Do outro lado está a China Popular, e a sua polícia, não sei se será melhor ou pior.



Até Kunjrab, o ponto mais alto por onde passa a estrada, 4750m, a região de grande beleza, oferece um parque natural onde existe muita espécie rara, se não foi já exterminada. O vale de Kunjrab é o topo da estrada, culmina a 4750 metros e abre-nos as portas à China Imperial, de feição muçulmana, nestes territórios ocidentais, à antiga Tartária da Ásia Central.



sost


Algures no caminho, pararam o autocarro, um minibus de poucos lugares, e mandaram sair toda a gente com a respectiva bagagem. Quando perguntei o que se passava, toda a gente estava a discutir nas respectivas línguas e dialectos, responderam que tinha de caminhar por cima de uma colina de terra e pedra. Parte da encosta montanhosa se tinha desabado sobre a estrada, e acabara por recobri-la completamente. Tínhamos de passar por cima com a bagagem, que outro autocarro nos esperava do outro lado do monte de cascalho. Vários sujeitos se tinham oferecido para levar a minha mochila por um bom preço, como sempre recusei polidamente, arguindo que estava apto, tanto mentalmente como fisicamente, para carregar os meus pertences. Quando me apercebi mesmo do que se estava a passar, isso já por cima do que estava a cobrir a estrada, o meu coração começou a bater mais rápido, bastante mais rápido. Um dos portadores, com pressa, com medo, com stress ou simplesmente com arrojo viril, empurrou-me, fazendo-me escorregar, pelo que percebi para andar mais depressa.

Como não podia deixar de ser, estávamos umas boas dezenas de metros por cima de um riacho, semeado de penedos. De repente, duas pessoas que estavam do outro lado do monte de terra, começaram a gritar e a gesticular freneticamente. Um era um civil, quase em pânico a olhar para mim, o outro um oficial do exército com uns binóculos. O mais engraçado é como o cérebro grava estas imagens todas, uma a uma como se fosse em câmara lenta. Deve ter sido tudo muito rápido, mas a mim parece-me que demorou uma eternidade. Estavam aos berros, e a fazer grandes gestos para me despachar. Quando dei por ela, estava sózinho com a minha mochila, os que vinham comigo tinham desaparecido, devem ter voltado para trás. O que me empurrou não o fez por arrojo viril. O civil estava a beira do pânico a olhar para mim.

A razão? Quando olhei para cima, para o meu lado direito, caíam pela encosta abaixo vindas do topo, primeiro, pedras pequenas e calhaus de vários feitios, pequenos mas que com o balanço que tinham ganho podiam deitar qualquer um ao chão. Foi então que avistei, uma rocha de muito maior tamanho que vinha na minha direcção. Não pensei, aliás já não conseguia pensar há uns bons minutos, parei, e deixei de caminhar. A rocha veio se esmagar há uns escassos metros de mim, como uma bomba que levantou muita poeira. Se não tivesse tido o reflexo de parar, não garanto que estaria a escrever neste momento. Agarrei as alças da mochila e comecei a correr o mais depressa que pude para acabar a dezena de metros que faltava. O homem a civil a beira do colapso nervoso e o militar ficaram muito mais aliviados quando me viram a beira deles. Olhei para a berma, para baixo e imaginei o meu corpo a bater nos rochedos, a desfazer-se todo por cima do riacho. Há uma faixa da Bjork com uma letra parecida.





Disseram-me mais tarde para ter cuidado, que não queriam carregar o meu cadáver para fora das montanhas, respondi humildemente para me deixarem apodrecer se algo sucedesse. Do outro lado do monte que cobria a estrada, ainda tirei umas fotos, e fiquei a espreitar através da minha longa objectiva, juntamente com o oficial com os seus binóculos, para o resto dos passageiros fazerem o mesmo trajecto. Uma senhora corpulenta de idade que estava ao meu lado no autocarro juntamente com o marido, esse muito mais magro, ambos de etnia tadjique e que passaram a viagem toda a discutirem um com o outro, atravessava o enorme monte de calhau, calçada de sapatinho prateado com um salto pequeno, e se não me engano ainda estava a discutir ou a pensar no marido. Confesso que me assustei quando vi a dita senhora caminhar lentamente com aqueles sapatos. Enfim locais, ou se não eram já conhecem o terreno.

kirilgoz


kunjrab


Quando toda a gente passou, retomamos a viagem até Kunjrab, a verdadeira fronteira com a China. Apenas um marco delimita os dois países, e talvez um soldado ou outro, congelados nos casacos nunca suficientemente quentes. Um deles olhou para mim, com ar de desgraçado. Os castigos ou as vinganças entre militares devem acabar em postos como este, no meio de nada. Os soldados chineses que me revistaram o passaporte pareciam em melhor forma. Pediram-me várias vezes o passaporte durante esta última parte, desconfiando de que poderia um ocidental fazer por estas paragens, coisa que não devia ser muito comum ultimamente.



No topo em Kunjrab, as marmotas atrevem-se ao sol, às dezenas, espalhadas pelo planalto. Os soldados chineses fazem, entre eles, corridas de camelos báctrios, os de pelo longo da Ásia Central. E os montes nunca foram tão deslumbrantes.

Entro na China pela porta ocidental, pelos montes Pamir, os povos passam a ser tadjiques, uzbeques, uigures, turquemenes e kirguizes, um patchwork das antigas repúblicas da União Soviética da Ásia Central.



Ao descer, senti-me mal. A cabeça continuava a funcionar mas deixei de ver. Não percebo o que se passou, talvez o efeito dos nervos depois daquela emoção toda misturado com a altitude. Um sujeito corpulento de barba negra estava agora a conduzir. Passou a ser o talibã. Parou algures na descida para o Xinjiang, para abastecer numa bomba de gasolina artesanal. Foi aí, que ficou tudo preto. Apenas, tinha consciência do cheiro enjoativo da gasolina, e dos meus pensamentos a lutarem para não desaparecerem.



Quando fiquei melhor, tive que vomitar. O grupo de chineses que ia ao meu lado, também se sentiu mal. E o talibã fitava-me pelo espelho retrovisor com desdém. Óculos escuros, barba preta e um chapéuzinho paquistanês. Isso até Tashkurgan. Pensei que íamos parar em Pirali, mas não, deixou de ser posto fronteiriço, abandonaram o lugar. A alfândega passou a ser em Tashkurgan, que fica bastante mais longe da fronteira física com o Paquistão. Gostava de ter mais liberdade de movimento para poder conhecer melhor esta região.

1 comment:

Carlos Lins said...

Fantásticas suas fotos, bem como os textos que mesmo pequenos vc consegue passar ao internauta uma visão clara de Hunza (Shangri-la).
O Pe Othon (o grego) pároco de um Templo local (Lins,SP) visitou esta região Himalayas entre 1962/70. Enviei um E-mail pessoal a vc pedindo permissão p citar seu blog num texto que estou fazendo (tradução) sobre esta fantástica região. Parabéns pelo seu blog.
Carlos Lins < carloslins.blogspot.com >