Thursday 31 May 2007

PAQUISTÃO

Província da Fronteira do Noroeste
De Rawalpindi, fui para Mansehra, foi escolhida como a minha primeira escala na estrada do Karakoram. O percurso oficial atesta que a estrada só começa em Taxila, perto de Pindi e pára 1300km depois, em Kashgar na China das novas províncias ocidentais, mas bom, Pindi pode ser considerado o início.





Entre os meios de transporte disponíveis no Paquistão, usa-se muito o Toyota Hiace de 9 lugares, disponível entre Islamabad e Pindi assim como entre as várias cidades, vilas e aldeias do país. É um meio rápido, eficaz, e barato para se deslocar. Se bem que nas mãos de alguns, torna-se num veículo frenético e desenfreado, às vezes em troços por cima de precipícios de centenas de metros. Apenas para amantes de sensações fortes. Geralmente, espera-se que os carros enchem para arrancar. Pronto, primeiro Mansehra.

fronteira do noroeste




pfno - indus




Deu-me impressão que na estrada até Komila no Kohistão, a minha próxima paragem na estrada do Karakoram, o condutor adormeceu durante uns escassos momentos ao volante, a uma velocidade razoável e numa estrada de montanha, com ravinas de lado. O passageiro ao lado do condutor agarrou no volante e virou-o no sentido contrário ao do precipício. Foi tudo tão rápido, que nem tive tempo de me aperceber do que se estava a passar nem de reagir.





De repente, mais à frente, estacionaram e deixaram-me sózinho na carrinha, apontaram para a mesquita e disseram que vinham já. Foram rezar e agradecer por não nos termos despistados, suponho eu. Já no autocarro para Islamabad, a uma dada altura estacionaram, foi toda a gente se lavar, e foi tudo para a mesquita. Às cinco horas da tarde, não falha. Aproveitei para dar uma volta curta pela área de serviço. Os céus são outros...







pfno - pattan


mansehra
Mansehra se encontra em terreno relativamente plano, mas no horizonte aparece já um esboço de montanhas, como se a estrada se dirigisse para um estreito desfiladeiro.

De Mansehra, fiz escala em Besham. No caminho, ao meu lado um homem de corpulência bastante imponente, exibia a licença de armas à mulher que não lhe ligava muito. Deve ter ido buscá-la, a licença, não a mulher. Devia querer impressionar. Em Besham, pediu-me que o ajudasse a descer uma cama ou um móvel qualquer do tejadilho do furgão. Ficou agradecido e fui almoçar. Ele usava uma barba imponente e a mulher um burka integral que a tapava completamente, com uma espécie de grelha à frente dos olhos, modelo que eu costumo chamar de “tanque de guerra”.





komila
Komilá é um ponto interessante na estrada do Karakoram, porque fica em pleno Kohistão, uma garganta tão funda talhada na rocha pelo rio Índus, tão abrupta que já era mencionada nos relatos dos monges chineses do primeiro milénio, como sendo uma região de difícil acesso e de difícil passagem. Mas o pior vem a seguir, acho eu, no troço que liga Dassu a Shatial, a estrada passa por umas gargantas que por sítios parecem paredes completamente verticais. É pena eu ter tido um mau lugar na carrinha, não pude apreciar um tipo de paisagem que só viria a encontrar no Kinnaur, mesmo antes de entrar no Spiti na Índia, uma verticalidade de cor cinzenta monocromática que mais fazia lembrar um filme de terror.



Levaram mais caro por este troço mas mesmo muito mais caro, e não protestas! A rádio passou, durante o trajecto todo discursos propagandistas de imãs e molás enraivecidos, uma hora e tal de vociferações verbais incompreensíveis para os meus ouvidos, as únicas coisas que se percebiam eram as palavras América, Europa, e os gritos de multidões ao referirem ao Kashmir. Quando me pus a espreitar para as expressões dos meus companheiros passageiros, desviavam o olhar para outro lado, para as montanhas.



O antigo nome do Kohistão era Iaguistão, a terra dos não governados, a lei tribal ainda permanece a única que prevalece, o poder central está bem longe, e a polícia escassa. Combates entre tribos são frequentes e sanguinários, para os lados de Gilgit, mais para Norte, lutas entre chiitas e sunitas são moeda corrente. Bandidos e assaltantes podiam se esconder sem problemas por estas regiões.



Cena número um: Komilá, um homem de mãos atadas nas costas entra na sala, seguido e dirigido por outros dois. As únicas palavras que se ouviam da boca do preso eram Allah! Allah! Saíram pela porta das traseiras. Voltaram uns curtos minutos a seguir e foram-se embora. A sala estava deserta, estava a tomar o pequeno-almoço relativamente tarde. Oito, nove horas.



Cena número dois: Komilá, um homem vem ter comigo e pede-me para seguí-lo. Sigo-o. Vamos até uma barraca de madeira no topo da aldeia. O técnico de electrónica do lugar convidou-me para um chá. No meio dos altifalantes, rádios desfeitos e outros componentes. Não falava inglês. Risos.



Cena número três: Na ponte, o professor de inglês da aldeia vem ter comigo para dar duas de treta. Tudo bem. Coisa habitual em sítios remotos.



Do outro lado do rio, fica Dassú. Daí, fica a porta de saída da província da Fronteira do Noroeste. Próxima paragem, Shatial, Chilás, a província das Áreas do Norte. A altitude vai subindo cada vez mais, gradualmente as montanhas tornam-se mais altas, aparecem os primeiros picos agudos, o Lashgelash de 3090m e o Gunshar de 4950m.





Nota: Queria referir ao John King, autor do guia da Lonely Planet, The Karakoram Highway, arranjei uma edição antiga em Katmandú, as mais recentes são mais turísticas. Escreveu um livro repleto de coisas interessantes sempre com uma abordagem descontraída e despreocupada. De louvar.

Tuesday 15 May 2007

PAQUISTÃO

Islamabad/Rawalpindi
Islamabad é a capital do Paquistão, da mesma maneira que Brasília é a capital do Brasil, uma cidade nova, desenhada do nada no papel, pensada no pormenor para ser o centro administrativo e político do país. Aliás basta olhar para o mapa da cidade, as ruas, as avenidas formam ângulos rectos umas com as outras, foram nitidamente desenhadas de régua e esquadro, feitas no atelier do arquitecto.

Rawalpindi é o centro populacional, das multidões, das mesquitas e dos bazares frenéticos, onde convém ficar para se ter um contacto com o Paquistão da rua. Separadas apenas por alguns quilómetros, as duas cidades de características distintas fundiram-se numa só metrópole de duas pontas.



Cheguei a Islamabad ao fim da tarde, de noite, nervoso, não gosto de chegar de noite a sítios que não conheço, por razões óbvias. Fui directamente da fronteira indo-paquistanesa para Islamabad, não parei em Lahore, por causa de boatos e histórias que circulavam sobre roubos, drogas e afins. Fiquei arrependido. Esses boatos provam ser sempre falsos, apesar dos estereótipos e falsas ideias pré-concebidas. Apesar do meu guia da Lonely Planet estar repleto de advertências em relação ao Paquistão, como evitar certas zonas, evitar viajar de noite, entre outras, nunca tive nenhum problema durante a viagem toda, fui bem tratado contrariamente à Índia, onde tive alguns pontos altos e mais quentes. Também não fiquei tanto tempo no Paquistão como na Índia, se calhar é por isso. A não ser um ou outro espertinho, que se encontram sempre pelo caminho, não tenho nada a dizer, talvez devido à hospitalidade muçulmana, ou coisa parecida, não sei. Também não digo que o país todo seja fácil de visitar, o que não é verdade, certas zonas são de facto muito complicadas e longe do poder central, a polícia e o exército não controlam tudo.



Conheci uns franceses mais tarde na China, que também passaram por aí, e mais, tiveram em Peshawar que goza de uma reputação ainda pior, por ser um centro de produção de armas, com fabriquetas artesanais espalhadas pela cidade, que conseguem excelentes réplicas de marcas conhecidas. O problema não é conseguir comprar uma Kalashnikov, o pior é passar a fronteira com ela.

Segundo esses tais amigos franceses, conseguiram passar os check-points e infiltraram-se nas zonas proibidas a estrangeiros.
Em Pattan, contaram que por quaranta rupias ou pouco mais por bala, podiam disparar uma verdadeira arma de combate tomando por alvo uma galinha.



Outro francês, este encontrado em Islamabad em estado avançado de decomposição, contou que se vestia de local, deixava crescer a barba e ia abastecer-se às zonas tribais, fechadas aos estrangeiros. O melhor que há arranja-se nas zonas tribais, dizia ele. Ele já era meio permanente nas redondezas, quando acabava o visto, atravessava a fronteira e voltava outra vez. A polícia costumava apanhá-lo várias vezes, pelos vistos já o conheciam. Apanhavam-no e enfiavam-no num buraco qualquer até ele pagar umas certas quantias que iam directamente para os bolsos da dita cuja justiça. Ao que parece, só o apanhavam para lhe sacar uns dólares, já deviam saber que ele tinha dinheiro.



Fiquei uns tempos sem saber se ia contar esses ″faits divers″, ou se ia manter-me por uma descrição mais turística, mais limpinha da coisa. Acontece que deu um desses domingos na BBC, um documentário sobre crianças, na Índia precisamente, que têm de trabalhar em estado de semi-escravidão para pagar dívidas, que muitas vezes não eram deles. Cheguei à conclusão que a podridão também faz parte da paisagem, que nestes casos está incluída no conjunto e que separá-la seria falsear a testemunha, mas pronto é uma posição. Felizmente histórias destas não faltam, e não posso contá-las todas. Mas porquê, então viajar nestes países, perguntam eles? A resposta pode estar nas fotografias, para quem consegue lê-las. Também passo a lembrar Jack London e ″The Call of the Wild″, só para dar um toque literário ao acontecimento. Nada de Jack Kerouac, peço desculpa a quem o sugeriu.



O posto fronteiriço de Attari/Wagah é o único ponto aberto que liga os dois países, que estão em guerra desde a partição da antiga colónia britânica em 1947, sendo a Caxemira, o pomo da discórdia.

Revistaram-me na fronteira, foram muito simpáticos, mas quando lhes disse que não trazia álcool nenhum comigo, desinteressaram logo da minha mochila e da minha pessoa. Suponho que muita gente se abastece de garrafas de whisky antes de entrar em países islâmicos. Agora, porque que ficaram eles desinteressados quando lhes disse que não trazia álcool? Será que ficam com uma ″percentagem″ para eles? Mistério.

Cheguei a Islamabad de noite, como já referi, mas não houve problema nenhum, o primeiro contacto correu bem, foi devidamente orientado para o centro da metrópole sem confusão nenhuma.



A minha mochila era de cor verde, uma ″Fila″ de dois tons verdes, que diga-se de passagem é a cor do Islão, o que a tornou relativamente sagrada, e me valeu um certo respeito. Os meus sapatos eram ″bordeaux″ o que também é a cor do Budismo tibetano, o que fazia deles segundo constava, uns sapatos santos. Enfim...



Queria também salientar que os céus são outros por estas paragens, e daí que os deuses também são outros, o que é um facto muito importante, e a ter constantemente em conta ao longo do caminho, convém sempre ter os deuses locais como aliados, é sempre uma vantagem. Um ou dois, ou mais de reserva, pelo sim pelo não.



Cheguei a Islamabad, a cidade estava em greve geral e protestos relativamente violentos estavam a ter lugar. O grosso da coisa tinha passado, mas ainda subsistiam focos de discórdia, essencialmente montes de pneus a arder um pouco por todo o lado. As lojas e os principais serviços estiveram fechados durante semanas, foi-me bastante difícil transferir dinheiro. Aliás, não consegui, devia ter tratado disso em Amritsar na Índia, paciência. Resolvi, no entanto continuar para Norte, e logo se veria na China. Tirei um visto chinês e fiz-me ao Karakoram. Direcção Mansehra.













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